Nota: 10
Engraçado como as pessoas reagem
aos filmes bíblicos, independente da qualidade artística, o que importa é ser
fiel ao texto sagrado, isso desde os tempos de "Os Dez Mandamentos"
(1956), "Ben-Hur" (1959) e "O Rei dos Reis" (1961), até mesmo antes disso, nos
tempos do cinema mudo, já era parte até do marketing se gabar da fidelidade da
adaptação, com o crescimento de vertentes fundamentalistas dentro das
principais religiões, essa cobrança está cada vez mais exacerbada. É nessa
realidade que Darren Aronofsky lança seu "Noé" (2014), um filme que
tenta humanizar o mito do homem que foi escolhido por Deus, quando Este resolve
acabar com o mundo e recomeçar do zero. Para isso o diretor se vale não só da
história contada na Bíblia, mas também de outros textos e fontes, além de
liberdades artísticas para concretizar sua visão. Em "Noé" há o
dilúvio, há o castigo divino, os animais chegam à arca de dois em dois, mas
nada é bonitinho que nem uma canção do Padre Marcelo.
Ainda criança Noé (Russell Crowe)
vê seu pai ser assassinado pelo jovem rei Tubal-Cain ( que queria conquistar a
terra de Lamech e testemunha a maldade no ser humano. Muitos anos depois,
vivendo com sua esposa Naameh (Jennifer Connely) e seus três filhos Sem
(Douglas Booth), Cam (Logan Lerman) e Jafé (Leo McHugh). Ao ter visões divinas
predizendo o fim do mundo, Noé parte em busca de Matuzalém (Anthony Hopkins),
seu avô, para se aconselhar acerca das visões enviadas por Deus. Lá ele entende
que O Criador dará fim à maldade humana e poupará apena os animais, por viverem
como no Paraíso, antes de Adão e Eva serem expulsos, para isso Nóé construirá
uma Arca, que servirá de refugio contra a tragédia que se abaterá sobre mundo.
Além de sua família, Noé tem ao seu lado a ajuda dos "Guardiões",
anjos que caíram a terra para ajudar Adão, Eva e seus descendentes.
Aronofsky, diretor de filmes como
"Pi" (1998), "Réquiem Para Um Sonho" (2000), "Fonte
da Vida" (2006), "O Lutador" (2008) e do Oscarizado "Cisne
Negro", nunca foi dado a facilitar as coisas para o espectador, nem em
termos de narrativa, nem visuais e "Noé" deixa isso bem claro logo de
inicio, não poupando o público da violência de uma época bem menos civilizada
da nossa "história", sem falar que ele incute no filme os conceitos bíblicos
de pecado, julgamento, justiça divina, ao mesmo tempo se utiliza de conceitos
mais contemporâneos como a Teoria da Evolução, em uma adaptação ao que é
descrito na Bíblia. Da mesma maneira em que ele respeita a falta de explicações
para alguns eventos, ele preenche outros com elementos não de fantasia, mas de
magia, como a presença dos Guardiões, anjos que escolheram ajudar Adão e Eva
após estes serem expulsos do paraíso e foram castigados por Deus, se tornando criaturas
feitas das rochas de nosso planeta, e que ajudam Noé como uma forma de
encontrar o perdão divino e ascender ao reino dos céus novamente, eles estão no
filme primeiro como uma forma de tornar verossímil a construção da Arca e
também moralmente como uma prova do perdão divino. Isso mostra também que o
diretor buscou inspiração em textos fora da Bíblia, como o Livro Apócrifo de Enoque.
Assim como Martin Scorsese fez
com "A Última Tentação de Cristo", Aronofsky humaniza os personagens,
Noé não é nem simplesmente bondoso, nem completamente impiedoso, ele tem
momentos de dúvida, medo e quando se entrega a sua tarefa, se transforma em uma
força quase que incontrolável e tudo isso toma forma através da incrível
atuação de Russell Crowe (em seu melhor papel em anos), que se entrega à
jornada de seu personagem, que ao contrário de outros filmes, leva a história
inteira para compreender seu real propósito, Crowe é auxiliado por um ótimo
elenco, com destaque para uma atuação surpreendente de Emma Watson, mostrando
que os anos de Hermione se encontram no passado e de Jennifer Connelly, que é a
fundação de tudo aquilo que o filme e a história realmente representa. Ray
Winstone está ótimo com o assustador vilão do filme.
Está claro que o diretor não
queria simplesmente fazer um desses documentários do History Channel ou um
daqueles filmes maniqueístas dos canais religiosos, ele compreendeu a
verdadeira essência da história e contou de uma maneira em que as pessoas
poderiam (se quisessem) entender os dilemas que uma pessoa comum enfrentaria
diante de eventos como os retratados no filme, sem falar que ele expõe a
natureza humana no seu melhor e pior, claramente na tentativa de mostrar o
caminho das pedras que leva a redenção. Ele conseguiu fazer algo raro no cinema
de hoje, um filme caro, mas extremamente autoral, visualmente criativo e
fantástico, mas também ancorado em seus personagens. "Noé" pode não
ser a mais fiel das adaptações, pode não ser o filme que todos esperavam e
certamente é melhor assim, afinal, ele sai da zona de conforto que geralmente é
destinada a esse tipo de filme por concepção (engessados na mesma fórmula usada
desde a criação do cinema) e do medo dos produtores de desagradar ou de
fracassar nas bilheterias. Darren Aronofsky é um diretor criativo demais para
deixar sua visão ser domada por convenções seculares e filtra essa história
mais do que conhecida pela sua visão única, em um filme poderoso, violento e
emocionante.
Noah, EUA, 2014 direção Darren
Aronofsky roteiro de Darren Aronofsky e
Ari Handel produzido por Scott Franklin, Darren Aronofsky, Mary Parent e Arnon
Milchan música Clint Mansell fotografia Matther LIbatique com Russell Crowe,
Jennifer Connelly, Ray Winstone, Emma Watson, Douglas Booth, Logan Lerman e
Anthony Hopkins. distribuição Paramount Pictures duração 138 minutos.
Drama/Aventura.